Revista Fotoptica Nº 40 - 1970 Biblioteca de Fotografia do IMS - Coleção Thomaz Farkas
I ndio , onde é que você vai com essa máquina na mão ? Q uando eu der o sinal vocês oito andem para o outro lado; e vocês sete façam o caminho inverso. Mário, qual a abertura? E a velocida de? Não, coloque o refletor mais para a direita. Atenção, turma, nada de risos e não olhem para a câmara. Agora, todos andando. Pronto. Está ótima! Vinte anos depois da proibição de entrar no quarto escuro do es túdio fotográfico, o menino índio domina a grande sala. Ali estão vinte pessoas cercadas de luzes, má quinas, objetos abandonados. Todos esperam suas frases de comando: índio, o fotógrafo José Gonçalves Pinto, o ZéPinto, sabe o que está fazendo. S eu José, o dono do ar mazém, não tinha sos- sêgo. No comêço riu muito, mas depois co meçou a ficar preocupa do. Não passava um dia sem que recebesse queixa de vidro partido, de fruta roubada, de briga na escola. Êle até gostava que seu filho, o índio, como a garotada o chamava, fôsse peralta. Mas as traquinagens estavam virando coisa séria. E tão séria, que Seu José e a mulher decidiram fazer logo o que estava planejado para mais tarde. Sair de Ponte Nova, cidade do inte rior mineiro para lugar maior: — Afinal de contas, o índio já está com doze anos e precisa traba lhar. Em Belo Horizonte êle vai ter mais chance de aprender uma pro fissão. Na capital, algum tempo depois, tudo continuava na mesma. Seu José, no seu nôvo armazém de secos e molhados, a mãe em casa cuidan do dos filhos menores, o índio na rua, quebrando vidraças, roubando frutas e brigando na escola. De noi te, o homem se queixava: — Olha, mulher. Ou a gente dá um jeito no garoto ou êle acaba perdido. Por isso, quando encontrou com Seu Constantino, amigo velho, ficou todo satisfeito: — Constantino, você caiu do céu! No dia seguinte, índio estava trabalhando no estúdio fotográfico de Seu Constantino, um velho se vero, de pouca fala e muita exigên cia. O trabalho de índio era varrer o chão, limpar os vidros do mos- truário de fotos, e buscar a marmita do velho e dos três filhos que traba lhavam no estúdio. Conhecendo a fama de índio, Seu Constantino fêz a recomendação no primeiro dia: — Não , entre no quarto escuro. Mas o aviso não adiantou. Teve muito papel de fotografia velado porque índio queria saber o que havia nas caixas amarelas guarda das no quarto escuro; e muito fre guês ficou sem as fotos porque êle acendeu a luz sem perguntar se podia. Apesar de tudo, Seu Constantino gostava de índio. Quem sabe, por causa da opinião da mulher — dona Conceição — ex-cantora lírica que passava muito tempo conversando com o menino. Foi ela quem suge riu ao laboratorista de Seu Constan tino que ensinasse índio a revelar e copiar fotografias. E o laboratorista ensinou tão bem que o dono do es túdio ficou surprêso quando um dia índio se candidatou ao lugar de auxiliar (o estúdio estava crescendo) e ganhou o pôsto. Em casa, entu siasmado, índio contava suas aven turas: — Pai, é tão bonito ver as figu rinhas aparecendo no papel! O estúdio tem duas salas na entrada: a do escri tório e a de projeções. No fundo, um salão de 50 metros quadrados. Em cima, o laboratório. É a fábrica de fotografias de Zé Pinto. Aqui nasceram milhares de fotos. Tôdas com um pedaço dêle mesmo, porque ZéPinto tem idéias definidas sôbre sua profissão: — Fotografia é uma linguagem que representa um estado de espí rito, uma visão que trascende a realidade, ou melhor, é uma inter pretação pessoal e singular da rea lidade, de acordo com a sensibilida de de cada um. O fotógrafo pode retratar emoções e emocionar. Fo tografar é quase um culto. O estar com a câmara na mão, buscando uma composição, um ângulo, uma luz, um plano, um todo, é quase uma religião. D o quarto escuro, índio pulou para o salão de fotografias. Acom panhava cada um dos gestos de Seu Constan tino, perguntando sem parar: — E a abertura? E a velocida de? Aquela luz não está muito em cima? Para fazer colorido muda o quê? O velho já considerava índio o seu assistente. Um dia, o pai do menino foi perguntar a Seu Cons tantino se podia comprar uma má quina para o filho. — Compre! Compre logo que êsse menino vai longe. índio fêz uma festa quando re cebeu a Kodak 127. E ninguém na rua onde êle morava teve mais sos sêgo. E ninguém teve mais sucesso do que êle. Era tôda hora a mesma coisa: — Tira uma minha? — Fique quieto agora que vou bater. — Vamos lá na frente da igreja que quero fazer uma foto sua. índio montou um pequeno labo ratório no banheiro de sua casa e começou até a ganhar algum dinhei ro. Principalmente do pessoal do time de futebol da rua. Fazia as fotos no campo — só posadas — e depois vendia a 2 cruzeiros cada. Começou a tomar gôsto pelo dinhei ro e quando um fotógrafo de rua — dêsses que batem a chapa e depois entregam o cartão — con vidou-o para trabalharem juntos, aceitou na hora, deixando o estúdio de Seu Constantino. Z é Pinto é um dos fotó grafos de publicidade mais famosos do Brasil. Fêz campanhas para quase tôdas as princi pais agências de propa ganda. E ajudou a popularizar centenas de produtos. Ainda agora, no seu estúdio, está um artista de televisão famoso, posando para a foto de um anúncio. — Atenção, pronto. Depois que termina o trabalho, ZéPinto fala das fotos que faz: — O que faço atualmente é fal so. Vou fotografar uma mãe dando comida para o filho, mas só con sigo fazer uma caricatura do real. Isso porque sei que a môça e a criança se embelezaram para sair no anúncio e não sentem nada uma pelo outra. Então perco o senti mento que estava ali. Poderia me enganar dizendo, como muitos, que minha foto vai vender mais o pro duto do anunciante e que, por causa disso, a indústria que o fabrica vai dar mais empregos. Mas isso é falso. Sei que estou na engrenagem, faço parte e uso dela. E fico neuró tico com isso, como agora: despedi todos os meus assistentes e funcio nários e resolvi ficar sozinho. Dimi nuí as despesas para fazer apenos o que gosto. Mas não dá. Estou sendo obrigado a fazer fotos para sobre viver. São o que chamo de fotos econômicas. E domingo, sol forte às dez horas da manhã, na avenida Afonso Pena, índio, que agora está dezessete anos, ouve as recomendações do nôvo patrão: — É fácil. Se vier um casal de mãos dadas você bate a chapa e se aproxima dizendo: “ Ficou muito bonito o flagrante. Aqui está o meu cartão. O senhor dá uma parte ago ra e retira as fotografias amanhã no enderêço marcado ” ; se fôr família a conversa é a mesma; com soldado é até mais fácil, não precisa nem ter namorada: êsses caras gostam de ter uma foto de farda. índio ouviu atento. Empunhou a máquia que o patrão lhe emprestara — uma Argues 35mm, tôda qua drada — e saiu a campo. Fêz mais de dez fotografias, mais da metade do salário que Seu Constantino lhe pagava, tudo em apenas um dia de trabalho. No dia seguinte é que deu complicação: — Essa foto não é minha! Aqui tem um monte de soldado e eu es tava com minha namorada. Olha aí! Isso aconteceu naquele domingo e durante muito mais tempo, índio invertia a ordem das fotos, mistu rava tudo e muito freguês voltou bravo. Mas índio foi aprendendo. E resolveu fazer seus próprios car tões. Foi assim que nasceu o fotó grafo José Gonçalves Pinto, que além de trabalhar nas praças e jar dins ainda fazia fotos de casamen tos, festas e bailes de formatura. 10
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