Revista Fotoptica Nº 40 - 1970 Biblioteca de Fotografia do IMS - Coleção Thomaz Farkas
E UM DIA DE FILMAGEM continuação Hora de almoço em dia de filmagem. Diretor, atores e técnicos no apartamento onde se passa a história contada nesta reportagem. pergunta ao maquiador: • — Você não vai maquiar a gente? — Não. — Por que? — Porque quem vai se deitar num divã de psicanalista não precisa estar maquiado. — E como é que a Irene está? — Porque ela tem muita sarda. Irene já está andando sôbre o di vã; é Cléo, de nôvo: — A gente dança no apartamento de Marcus ... Faz uns movimentos de dança mo derna. — Eles fumam, mas eu não gos to. Eles bebem uísque, mas eu não gosto. Eles tomam uns comprimidos, mas eu não gosto. Dá um negócio horrível na gente. .. Uma maluquice, uma aflição ... Uma vez eu tomei, êles me obrigaram. Eu pensei que ia morrer... Eu nunca morri, não sei como é ... Por que é que eu tenho mêdo, então? Encolheu-se sôbre o divã: — Já está cheio, Rudi? John fêz que não. — A gente se abraça. A gente se beija. Então êles começam. .. Encolheu-se ainda mais: — Na primeira vez eu tive mêdo. Mêdo de morrer, compreende? Só que não aconteceu nada. Agora é di ferente ... Fêz uma pausa e sentou-se: — Quer dizer, continuo não sen tindo nada, mas não tenho mais mê do. Ê bom, êles ficam contentes e, depois, me deixam cuidar dêles. Então, com o olhar vazio, voltou a deitar e completou: — Sandra disse que sou fria. .. — Corta! — gritou Freire — está tudo bem, mas tenho a impressão de. que o vento balançou os cabelos da Irene! Não foi? E virou-se para nós extras, como se de nós dependesse o veredito. Lili, que tinha notado o vento, e estava honrada com a consulta, fêz sim com a cabeça. — É — continuou Freire, como se não tivesse consultado ninguém — , temos de repetir a tomada. No meio da confusão e do grande movimento, Irene, a estréia, dava a impressão de uma criança esquecida do mundo, completamente absorvida em sua fantasia. Pequenina, olhos de gato, mal terminada uma tomada, pe gava o roteiro do filme preparando- se para a próxima. Quando Freire, depois de conversar com Icsey, ia discutir com ela e John, ela mostrava saber tudo de cor. E quando o dire tor se afastava, ficava repetindo o papel, experimentando caras e en tonações de voz diferentes. Às vêzes parava e ficava olhando as coisas. Mas com o olhar perdido, como se não estivesse vendo nada. Sua prepa ração para o filme fôra demorada e intensa; um trabalho de três meses. Após a repetição da tomada, tira ram a câmara de cima do carrinho e passaram-na para um tripé bem alto. Agora o que não dava certo era a posição dos refletores. Irene ia ficar deitada no divã, outra vez e John teria que se levantar e vir para perto dela. Mas os refletores estavam pro jetando duas sombras de John, e isso não podia acontecer. Freire aprovei tou para uma brincadeira: — Será que você não pode parar de fazer sombra à Irene? Ainda não desconfiou que você não é o único artista dêsse filme? Vê se pára quan do estiver na altura dos seios dela. — Aonde? — perguntou John — em cima dos seios dela? John é bem diferente de Irene. Mais sociável, estava sempre batendo papo com alguém. Olhava para nós, os não-atôres. como se quisesse adi vinhar quem éramos e o que fazía mos na vida. E, como não houvesse muito tempo para bate-papo com todo mundo, contentava-se em fazer qualquer gracinha dêsse tipo, talvez para nos dar uma espécie de satis fação. Mas, àquela altura, nem sem pre conseguíamos rir. Já naquela al tura, satisfeita a curiosidade inicial, começávamos a sentir certo cansaço e fome. Ajeitando os refletores, l c sey dava mais uma explicação a Guilherme, que continuava com as perguntas: — A dificuldade do trabalho é que nós não filmamos nem vamos fil mar nada em estúdio. Vai ser tudo em locais escolhidos. Além disso, te mos evitado usar lâmpadas Colortran, apesar de seu manuseio mais fácil. Freire e eu preferimos explorar ao máximo os refletores, porque dão mais relevo à fotografia. A Color tran achata tudo. Resolvido o problema da coloca ção dos refletores, a máquina volta a rodar. Irene está mexendo os braços, len tamente: — Pensei que gostando muito da pessoa eu conseguisse ... O que San dra sente, entendeu? Tentei com Marcus, depois conheci Daniel, um amigo dêle. Daniel é o cara mais bonito que já vi, Mas Daniel não gosta de mim. Não me deixa gostar dêle. Acho que foi dêle que engra videi ... Aí fixou o olhar no teto do con sultório: — Mamãe descobriu, me levou num médico, me operaram ... Virou-se para a parede. — Foi êsse médico que me ensi nou, explicou as coisas. Eu não sabia de nada ... Voltando-se lentamente para a câ mara. — Sabe que mamãe tem um na morado? Sempre teve. Eu sabia. Pa pai também sabe. Eu não entendia, não me importava, não me importo. Nem papai. Êles brigavam muito. Agora, não. Encolheu-se um pouco. — Comigo é diferente. Êles que rem gostar de mim, mas não conse guem. Nem eu. Gozado... Só me lembro de papai e mamãe do jeito de quando eu era criança ... — Cléo! John se levantou e veio para per to dela. — Acabou sua hora. Ela ergueu a cabeça, assustada. — Corta! Mais uma tomada chegava ao fim. Viriam outras naquêle mesmo dia e lugar, mas agora surgiu um proble ma inesperado: acabara o celulóide. — Vou tirar uma soneca. Freire deitou-se britânicamente no chão e fechou os olhos, enquanto alguém saía em busca de novas latas de filme-virgem. — Cinema brasileiro é assim mes mo. Ademir procurava remendar as coisas, preocupado com nossas caras (nós extras) já chateadas. — Cinema brasileiro é lento por que é pobre. Nos Estados Unidos êles enchem esta sala de máquinas por tudo quanto é lado e vão filmando. Depois, na hora de montar o filme, escolhem o ângulo melhor e pronto. Aqui é o que vocês estão vendo. Pa ra cada tomada tem que ser esco lhido exatamente o ângulo que se quer, porque só tem uma câmara. Vocês sabem que. .. Ademir continuou falando, mas ne nhum de nós extras conseguia acom panhá-lo. Estávamos chegando à irritação, pela espera que se espicha va. As meninas já não tinham mais nada para comentar. Tínhamos tenta do matar o tempo lendo umas revistas que eu trazia, mas depois de pas sarem de mão em mão. inclusive pe las de John, havia muito que tinham voltado para minha pasta. O único extra que continuava ani mado era Guilherme. l ogo que ouviu falar em buscar mais filme, lembrou de perguntar qual era a marca. — É Kodak 4 X — respondeu Icsey — e' a vantagem dêle é que a gente pode dosar bem o contraste, mesmo com pouca luz. Nessa hora, Freire abriu os olhos e. continuando deitado, se meteu na conversa: — Essa marca foi escolhida em função do que queríamos dizer em “ Cléo e Daniel ’ ’ , que é um filme psi cológico. Num filme dêsses, a gente tem que poder dosar bem o contras te, intensificando nos momentos mais dramáticos e diminuindo nos de maior poesia. É o mesmo tipo do usado naquele filme polonês, “ Cinzas e Diamantes", e também no “ Zor bam, o Grego ” . Aliás, foi vendo Zor ba que resolvi usar essa marca. Por isso também fiz questão de ter o Icsey como diretor de fotografia. Êle é o único que já usou essa marca no Brasil. Mas Icsey não gosta que falem dê le e resolveu interromper o diretor, voltando-se para Guilherme: — Você conhece fotografia, sensi bilidade do filme, essas coisas? — Entendo um pouco — respon deu Guilherme. — Pois é. O filme mais sensível que se usa normalmente é o Plus-X, que tem ou 100 ou 125 ASA. Êste filme aqui é de 500 ASA. Com pouca luz pode-se fazer verdadeiros mila gres, o que representa ainda uma grande economia de pessoal e mate rial. Hoje estamos trabalhando com quatro refletores de 2 mil watts, por que o ambiente tem que ser bem iluminado. Mas outro dia filmamos uma cena de festa à meia-luz, e eu usei apenas três refletores de 500 watts. Tem muito pouco diretor de fotografia que sabe disso. De repente, soou uma sirene. Cor remos todos para a janela, mas um tapume impedia a visão da rua. Foi quando chegou Chico Aragão, o ator que faz o papel de Daniel, o herói. Vinha só para uma olhada, pois não entrava na filmagem dêsse dia. — Está havendo um incêndio aqui ao lado, mas não tem problema; é coisa pequena. 22
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