Revista Fotoptica Nº 44 - 1970 Biblioteca de Fotografia do IMS - Coleção Thomaz Farkas

ABRAÃO BENJAMIM “ AGORA FIQUEM QUIETOS, E OLHEM PARA A MÁQUINA" — TEXTO DE GEORGE LOVE O “ snapshot" (instantâneo) é certamente o tipo de fotografia mais praticado no mundo. Suas quali ­ dades — simplicidade da relação entre o fotógrafo e o assunto, e interêsse ingênuo de alguém em outra pessoa ou coisa — fizeram dêle o mais des ­ tacado representante da fotografia, livre de pre ­ tensão, imitação, sofisticação. O "snapshot ” é livre. Êle não requer nem máquinas nem técnicas especiais e é aberto a todos. Não tendo nenhu ­ ma exigência especial, o “ snapshot ” tem um imediatismo que traz o sabor da própria câmara fotográfica. É o sabor da câmara, o gôsto direto que vem das origens da fotogra ­ fia, que salta nas ima ­ gens de Lampião. São “ snapshots" feitos por um homem interessado em seu assunto, sem preocupações com mais nada. As pessoas apare ­ cem de pé, sem nenhum truque nas poses. Quase Corisco, sua mulher Dadá e o fotógrafo Benjamin Juazeiro , 1937, Abraão Benjamin, sujeito corpulento, 35 anos, comerciante de medalhas procura seu “ padim ” Cícero e conta-lhe que vai fotografar o bando de Lampião. O padre acha graça do "afilhado ” : o Turco mal sabe escrever e nunca experimentou uma máquina na vida. Mas resolve ajudá-lo e manda-o a Fortaleza, atrás de um amigo, Ademar Albuquerque, dono da emprêsa ABA Filmes. Ademar entusiasmou-se com a idéia assim que o Turco começou a falar. E garantiu financiar o filme se o padre Cícero desse uma "carta de apresentação ” , para que Abraão chegasse aos cangaceiros em segurança. Tudo foi resolvido em segrêdo, e o Turco partiu ao encontro dc Lampião. Levava duas máquinas: uma Zeiss Kinamo, filmadora simples mo ­ vida a corda, chassi para 25 m de filme; e uma Box-Tengor de caixão, rudimentar, de três distâncias: “ infinito ” , "retrato ” e "foto de grupo ” . Ademar lhe tinha dado as instruções: fotografar à luz do sol, com diafragma em 16; com céu nublado em 11; com tempo escuro, em 8; embaixo das árvores, em 4,5 ou 6; preferir os retratos às fotografias movimentadas. Com o filme Verychrome Kodak, ortocromático, de densidade média e única, o Turco não podia errar. Era só regular a luz. De três em três meses, Abraão aparecia. Ademar corrigia os de ­ feitos, êle ia aprendendo. Mas era muito relaxado: no embornal, misturava chassis, filmes com farinha de mandioca, rapadura. Quando Ademar revelava os filmes sempre apareciam umas formi ­ guinhas na tela: atraídas pela rapadura, elas entravam no chassi e viravam "assunto ” junto com Lampião. Na terceira viagem ao sertão, podemos ouvir Abraão, o fotógrafo. ” ... agora fiquem aqui, olhem para a máquina, não se me ­ xam. .. ” As imagens se repetem, mas é uma repe ­ tição típica da fotografia, que não cansa. Os fotó ­ grafos vêem o mundo assim: sequências de ima ­ gens, muitas vêzes não muito diferentes umas das outras, cada uma delas uma nova peça da obra fotográfica. O conjunto forma o retrato de Lampião, embora êle não apareça em tôdas as fotos. Tra ­ ta-se de uma abordagem de assunto tipicamente fotográfica, e a mais tí ­ pica, apesar de o perso ­ nagem principal apare ­ cer poucas vêzes. Estas fotografias o colocam no contexto de sua época com o imediatismo abso ­ luto, que é típico de seu gênero, o mais autênti ­ co da visão fotográfica. Elas são uma história através da câmara, uma das contribuições da fo ­ tografia para o conheci ­ mento de nós mesmos. o Turco levou as fotos: cangaceiros comendo, atirando, mulheres lavando roupa. Uma festa no bando. De outra vez, êle apareceu preocupado em Fortaleza. "Sem querer", tinha derrubado a lente da filmadora no chão e pisou em cima. Foi necessário comprar outra. Em 1939, o documentário estreou em sessão especial para as autoridades de Fortaleza. Meses depois, foi confiscado pela ditadura, considerado uma desmoralização para a polícia de Getúlio, que es ­ tava perseguindo Lampião. Só em 1941 os sócios da ABA tentaram reaver o filme: receberam 20 contos de indenização (não pagava nem um décimo dos gastos). Em 1950, nova tentativa, mas o filme tinha desaparecido dor arquivos do antigo DIP. Acredita-se que seu para ­ deiro seja conhecido por um fotógrafo do Rio, Alexandre Wolff, cinegrafista na época de Getúlio. Uma cópia andou em poder dos irmãos Marvin, ex-proprietários da emprêsa Brasil Oiticica. Agora, o filho de Ademar, Francisco Albuquerque, fotógrafo profissional em São Paulo, faz um apêlo: — Embora ingênuo, é um documentário de excepcional valor his ­ tórico. Peço ao govêrno tôdas as providências para recuperá-lo. É digno de figurar entre as relíquias do Museu da Imagem e do Som. O Turco morreu tràgicamente. Anos depois das filmagens, foi en ­ contrado num quarto de pensão em Fortaleza, com várias facadas nas costas. Francisco Albuquerque diz que sua morte nada tem a ver com o filme. Na época, falou-se em “ crime passional ” . Mas havia a versão de que tinha sido assassinado a mando de gente importante que teria mêdo de aparecer nas fotos ao lado de Lampião. 19

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