Revista Fotoptica Nº 44 - 1970 Biblioteca de Fotografia do IMS - Coleção Thomaz Farkas
A história de Virgulino Ferreira, o cangaceiro Texto condensado do livro “ Os Cangaceiros ” , de Maria Isaura Pereira de Queiroz Quando Lampião foi morto, em 1939, a polícia da Bahia fêz o inventário das coisas que êle trazia. É uma lista im pressionante: 1 — O chapéu de couro, tipo serta nejo, enfeitado com 50 berloques de ouro, entre êles anéis, moedas e meda lhas. Numa das medalhas, a inscrição “ O Senhor Seja Teu Guia ” . Na parte de trás do chapéu, uma fita de couro cra vejada de medalhas de ouro e cinco dia mantes. 2 — O cinturão de couro, todo enfei tado, com capacidade para 121 balas Mauser. Amarrado à cartucheira, o apito de prata com que êle ordenava as reti radas. 3 — As duas armas pessoais: um fuzil Mauser modêlo 1908, de uso exclusivo do Exército, e uma pistola Parabellum, de 1918. O fuzil decorado com moedas de prata e metal, a Parabellum guarda da numa bainha de couro prêto. 4 — O facão, de aço, quase um metro de comprimento (67 cm), com três anéis de ouro, mais três anéis no cabo que também tem marcas de bala. 5 — As duas tiras de couro que êle usava cruzadas no peito, e que serviam de base para apoiar o fuzil, com sete moedas de prata do tempo do Império e cinco círculos de metal branco incrus tados. 6 — As mochilas, cobertas de borda dos de côres vivas, fechadas com botões de ouro e prata. 7 — As sandálias de couro, tipo ser tanejo, de excelente qualidade. 8 — O paletó de tecido azul, com três divisas nas mangas. 9 — Dois cobertores, de tecido co mum, forrados de algodão. 10 — Um lenço vermelho, de sêda, com bordados. Mais o dinheiro e outras coisas que levasse nos bolsos, Lampião caminhava suportando um pêso entre 40 e 60 qui los. Um homem grande Em 1930, quando Lampião ainda rei nava, o escritor Ranulfo Prata descre ve-o, num livro, como um homem im pressionante, de grandes mãos e um me tro e oitenta de altura — coisa rara entre os nordestinos. Ombros largos, ca belos prêtos, lisos e longos, cobrindo o pescoço e chegando até as costas. Gran de resistência física e admirável lucidez de raciocínio. Dentes perfeitos e limpos. Lampião, ou Virgulino Ferreira da Silva, nasceu num dia 12 de fevereiro. O ano é duvidoso — pode ser 1898 ou 1900. É o terceiro de nove filhos (cinco homens, quatro mulheres) de José Fer reira da Silva e Maria Lopes. A família vive na fazenda Passagem das Pedras, município de Serra Talhada, Pernambu co. Contra a sua vontade, José Ferreira é envolvido em brigas políticas de famí lias poderosas e acaba sendo morto por uma volante (destacamento móvel da po lícia). João, o único dos filhos de José Ferreira que não entraria no cangaço, conta, numa entrevista de 1953, como tudo começou. Virgulino, ainda que não fôsse o irmão mais velho, tinha influên cia sôbre os outros. — Virgulino então me disse: João, você tomará conta de nossas quatro ir mãs e do pequeno Ezequiel. Vá longe daqui. Procure um lugar onde você pos sa viver em paz. Perdemos tudo. Agora só nos resta matar. Até a morte ... Antônio, Livino e Virgulino entram para o bando de Sinhô Pereira e Luís Padre. Ezequiel, que ficara com João, assim que cresce um pouco acaba indo também para o cangaço. Virgulino ganha o apelido durante um combate com a volante. A luta é à noite e Virgulino, ágil no gatilho, mantém de sua posição o brilho do tiro permanente. Os disparos repetidos dão a impressão de que o fogo da boca de sua arma não se apaga. Luís Padre, o chefe, então, brinca: — Se a gente cair numa emboscada à noite, já temos um lampião para nos alumiar. A “ cabroeira ” gosta da comparação e o apelido pega. O fogo do fuzil de Lam pião vai iluminar (e aterrorizar) o sertão durante quinze anos. Um homem grande (mas também pequeno) Optato Gueiros, oficial de polícia do Ceará no tempo de Lampião, escreveu um livro de memórias. É um documento importante. Do ponto de vista moral, chama Lampião de híbrido. É ao mesmo tempo ladrão e generoso, assassino e protetor, hospitaleiro e cruel, amigo e vingador, carinhoso e torturador. É enér gico e mantém, no bando, uma discipli na severa. Seus cabras respeitam-no in condicionalmente. É o médico, o enfer meiro e o parteiro do bando. Mas é tam bém seu poeta. Depois que Maria Bonita entra em sua vida, Lampião será visto compondo versos e músicas a ela dedi cados, ou improvisando novas canções em sua sanfona. Sua hospitalidade fica famosa; uma visita grata é sempre rece bida com festas e boa comida. A generosidade de Lampião vira lenda, acabam dizendo que êle é capaz de matar um cabra que desrespeite uma velhinha. Mas a crueldade de alguns de seus crimes também corre, e êsses casos vão compondo, para o povo, a sua per sonalidade. Ranulfo reproduz em seu livro o que considera o crime mais impiedoso de Lampião. Manuel Salina é um lavrador cheio de filhos, da região de Jeremoabo. Um dia os cangaceiros chegam em sua casa e êle lhes dá de comer. Mas, pouco depois que êles partem, chega a polícia e Manuel, inocentemente, indica a dire ção seguida pelo bando. Há um duro combate. Lampião comanda a retirada e todos escapam. Manuel Salina sabe, então, que é um homem condenado à morte. E foge da vingança, levando a família tôda. Um dia, entretanto, lem bra-se da mandioca que plantou e volta à casa para arrancá- la . Traz a família, pensando em fazer farinha , abastecer-se e fugir novamente. A rêde de informan tes, porém, era grande e, com Manuel Salina e os filhos ralando a mandioca, chegam os cangaceiros. Lampião se destaca: — Dêste nós vamos abrir o peito. Quero ver como é o coração de um trai dor. Então ordena que cada filho seja amarrado ao pai, um de frente para o outro. E mata um filho de cada vez com um tiro na nuca. Desamarrado um ca dáver, amarra-se outro filho e a opera ção repete-se três vêzes. O quarto conse gue fugir. Para compensar, Lampião quer saber onde mora o quinto, que é casado, e leva o velho Salina até lá, para ver o filho morrer também. Moradores da redondeza, que tinham vindo aju dar no serviço da mandioca, são também mortos. Confirmando um traço de sua personalidade estranha, Lampião poupa as mulheres — tanto a companheira como as filhas de Salina. Começa a tor tura do velho: furam um olho, cortam as orelhas, quebram os dentes, castram- no. Ainda o levam, num cavalo, até ou tra fazenda e só aí acabam de matá-lo, abrindo-lhe o peito a facão. — Então é assim o coração de um traidor? Um império de três reis Um dos fatos mais interessantes da cultura brasileira é que o cangaço e o cangaceiro, apesar de contidos no tempo (de 1894 a 1940) e no espaço (o sertão de oito Estados nordestinos), acabaram tornando-se um mito nacional. Marca ram principalmente as manifestações de cultura popular — desafios, cantoria de feiras, repentes, literatura de cordel, fi gurinhas de barro — mas empolgaram também romancistas, poetas, pintores e gravadores. Levado ao cinema em 1953 por Lima Barreto, o tema ganha fama internacional. A figura do bandido muda com o tempo. Êle perde os traços negativos e passa a ser visto como um cavaleiro de fensor dos pobres, um agitador social. Criminoso, o cangaceiro mata, sim — mas mata segundo um código de honra. O sentido de sua vida é lutar contra a opressão de uma sociedade onde pesam as hierarquias. De um lado, o coronel poderoso, dono de tudo e de todos. De outro, a polícia, a serviço do próprio coronel. A um justiceiro, a um lutador social, não resta outra alternativa que a caatinga, a lei da bala, a violência. A origem dos bandos é quase sempre uma briga de família. A organização familiar do sertanejo — com um prin cípio de solidariedade e de linhagem vindas da Idade Média — é quem vai conquistando o sertão. O boi é a van guarda e o teto; êle dá o alimento, mas sobretudo dá o couro; cria-se a civiliza ção do couro. No tempo da conquista, o homem é o vaqueiro, trabalhador e pacífico. Na hora da opressão, entre tanto, torna-se o cavaleiro. Os român ticos cavaleiros andantes da Idade Mé dia, proclamados de boca em bôca, alimentam a imaginação do sertanejo; êle ouve falar de Carlos Magno e das lutas de Roldão contra os Mouros. Os chefes das grandes famílias — muito cedo chamados de coronéis — conside ram-se pequenos Carlos Magnos, cerca dos de pares e de vassalos armados. O conflito entre as grandes famílias, opon do seus respectivos poderes de fogo, cria o cangaceiro. É um homem de couro: o cavalo e êle próprio usam o couro para se proteger dos espinhos da caatinga; a paisagem é da cor do couro, as portas das casas são de couro; de couro também as camas, os cobertores, as mochilas, o chapéu. No comêço, o cangaceiro luta por seu coronel; não decide coisa alguma. Faz o que man dam, atira em quem condenam. Depois se tornará independente, decidirá as coisas por si próprio. Um fenômeno da natureza concorre para isso: as sêcas de 1825 e 1877. Desorganizando total mente a economia sertaneja, a estiagem fêz ruir a poderio econômico dos gran des coronéis, desarticulou as lutas de família. Os cangaceiros então agrupam-se em tôrno de líderes naturais, às vêzes alian do-se a um eventual chefe político, às vêzes defendendo uma fazenda contra outra, às vêzes até ajudando o govêrno 26
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